Vida antitética

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Vida antitética

Não faz muito tempo, passei a refletir profundamente sobre o caráter antitético da vida. Suas zonas limítrofes e conflitantes, necessariamente presentes em cada instante da existência.

De maneira superficial, todos sabemos que viver consiste em aceitar e aprender a lidar com as contradições dos pensamentos e dos atos. Com as incoerências que, parece, fazem parte da nossa natureza. Em maior ou menor grau, escorregamos nos próprios argumentos e, em tentativas ora frustradas, ora bem-sucedidas, nos aproximamos do que acreditamos ser. No entanto, é certo que, em essência e em integralidade, não somos o que pensamos. 

Todas as abreviaturas do tempo me parecem convergir para lugares opostos ao mesmo tempo. Os atalhos que encontramos em nossa jornada nos indicam que, por mais que saibamos que o caminho inteiro é mais substancial e indicado, gostamos dos desvios. Nos interessamos pelo surpreendente e, mesmo quando aprendemos algo que invalida o conhecimento precedente ou que acrescenta algo de complexo à informação primeira, inconscientemente damos um jeito de criar vestígios de contradição.

Nos esforçamos para ressignificar a vida, mas não nos livramos completamente dos significados a ela outrora atribuídos. São processos cumulativos e onerosos, pois não é possível simplesmente abstrair os rastros deixados pelas versões que vieram antes. Essa atualização ininterrupta pode ser brutal ou revigorante. Bela ou assustadora. Ou, se assumirmos a postura antitética dos objetos, brutal e revigorante. Bela e assustadora.

Essas predileções que carregamos na bagagem da existência, sentenciando aos pensamentos uma via positivista das circunstâncias, são tão falhas quanto qualquer tentativa que façamos para manter uma mente cem por cento centrada ou cem por cento razoável. Não faz parte nós a completa razoabilidade ou o lúcido inequívoco. Ao contrário, somos partículas em constante ebulição. Ideogênicos e viscerais. Lúdicos e opacos. 

Nossas vias de objeção são limitadas, ainda que saibamos muito sobre algo. Conforme amadurecemos, é possível perceber que o conhecimento também é relativo, pois toda a subjetividade que nos compõe é um fragmento a mais ou a menos para toda a informação que nos chega. “Ah, mas e a matemática?”, perguntariam os donos da razão. Até ela, eu diria, é filha de uma ancestralidade universal própria de uma inteligência que, sem dúvidas, nos supera. Nos orienta e nos define em certo ponto. Contudo, não gosto de pensar que as reduções são uma consequência da beleza dos números. Ao invés disso, os vejo como ferramentas do próprio antitetismo que nos dá argumentos para pensar a vida e modificá-la. Que nos torna apurados em espírito, já que exige muita maleabilidade e jogo de cintura para conseguir sobreviver dentro da própria pele sem enlouquecer definitivamente.  

Esse antitetismo tem algo de poético e necessário. Um caminho intravenoso ao sagrado e ao profano que nos constituem simultaneamente. Não há nada mais próximo da poesia do que a virtude da dúvida e das lacunas, que vai abrindo portas e janelas para as possibilidades do hoje e do amanhã. Do ontem e do sempre. Afinal de contas, o passado é, em seu cerne, uma invenção. Suas contradições por meio dos enredos que o amarram são pura beleza e frustração. Nos colocam em abismos de incertezas que, justamente pela sua realidade de infinitos, não nos permitem fuga em relação às entrelinhas. Aos recomeços e infortúnios das histórias que, a cada nova geração, são recontadas, tendo em suas colunas estruturantes novas palavras e ensaios, assim como menos vírgulas e pontos. 

Em direção às solidificações do destino, vamos desamarrando alguns preceitos, de modo a nos sentirmos mais livres em relação aos nossos percalços. Sem cerimônias, vamos consolidando a coexistência de partes virtuosas e inglórias da nossa constituição e dos nossos pensamentos. Somos vísceras inacabadas de sensações e pensamentos que, até onde se sabe, não possuem limites ou possibilidade de prognóstico. Nesse sentido, só posso pensar que a existência é um chamado à criatividade e ao desespero. Uma zona nada amistosa entre a rebeldia de deixar que as coisas aconteçam e a sina do controle ilusório a respeito do tempo que atravessa as circunstâncias.

Thiane Ávila

Thiane Ávila

Escritora