Ressentimento
Tenho pensado muito, com auxílio de autores como Nietzsche e Freud, a respeito do ressentimento. Do sentir de novo. Da repetição de um ato que se tornou passado, mas que, ao ser sentido de novo, ganha novos ecos. Reverbera sempre de forma distinta. É um capítulo exclusivo, mas repetido. Ressentir tem tantas versões que é impossível conceituar a ação sem o seu afeto. Não há quem sinta, afinal, sem atribuir sentido. O significado é o resultado do sentimento, ainda que seja mutável.
Vez que outra, me pego em paradoxos verdadeiramente prisionais. Me atenho a detalhes fortuitos, mas, ironicamente, importantes. Grudentos até. Compreendi que o ressentido não está tão interessado na resolução do sentimento. Ele quer sentir de novo. Quer inovar a experiência conhecida, enredando-se cada vez mais, e de formas diferentes, no conhecido. É perigoso ver-se livre de um sentir domesticado. O desconhecido causa ansiedade e, por isso, talvez estejamos, na maioria das vezes, mais interessados na apreciação dos problemas do que propriamente nas alternativas de solucioná-los. Pode parecer um pouco duro admitir essa proeza, mas insisto que cada um faça, ao menos uma vez na vida, essa autoanálise, percebendo, de maneira prática, as vias possíveis de contornar situações aparentemente fadadas. Há sempre um jeito, ainda que resistamos a ele com novos problemas que se somam com a única finalidade de não dar vazão à solução.
O ressentimento coaduna oposições. Na prática, é como se quiséssemos exorcizar o sentimento ao senti-lo de novo. No entanto, o que fazemos é torná-lo mais próximo, mais familiar. Na vida adulta, há tanto com o que se preocupar que, na melhor das hipóteses, há quem prefira selecionar problemas repetidos para não precisar descobrir novas sensações advindas dos novos. A selva de pensamentos que nos acomete resulta em uma paralisia emocional importante. Nunca a ponto de nos salvar das frustrações, mas com frequência nos envolve sob matizes variados de uma mesma dor.
Ressentir-se para não sentir o peso da culpa. Ressentir-se para deixar nas sombras o verdadeiro âmago de um ser que pulsa, que surpreende quando acontece. Ressentir-se como forma de evitar as possibilidades do novo – notadamente as frustrações inevitáveis da novidade, das decepções e anseios oriundos de expectativas não realizadas. O ressentimento é, pois, uma válvula de escape poderosa. Uma máscara colada com precisão e requinte nas faces alheias. Somos, por natureza, ressentidos. Tememos a dor e o sofrimento, mas, por serem inevitáveis, preferimos sucumbir sempre aos mesmos.
A culpa, tão avassaladora, nos coloca em impotência perante a ação. Se sinto-me culpada, realizo pouco, pois estou apegada a um sentimento passado, já que a culpa é sempre resultado de algo. Ao invés de repará-la, tantas vezes a encadeamos com outras proposições. Envolvemos, em uma cadeia somática, suas nuances como forma de impossibilitar a liberdade verdadeira, claramente mais angustiante do que as celas inevitáveis de um mundo que nos aprisiona. Será sempre mais fácil reclamar das algemas a investir na liberdade. Quando livres, respondemos integralmente por um corpo que pulsa e que toma suas próprias decisões. Os resultados, onipresentes, são sempre uma amostra das escolhas que fazemos. Sempre parceladas, mas igualmente inevitáveis.
Portanto, creio que ressentir seja um equivalente a manter-se estagnado, virtual ou materialmente. Na vida, há inúmeras maneiras de manter-se ativo, ainda que determinadas ações não representem movimento. Morar em ilhas de ressentimentos significa evitar as surpresas das ocasiões, adicionando sempre camadas de importância ao passado. Reforçamos os culpados como garantia de não trazermos para o próprio entorno os reflexos de um desenrolar de acontecimentos tão fortuito quanto inesquecível. Ao colecionarmos nomes e histórias, ocupamos todos os espaços dos pensamentos e mantemo-nos, na medida do possível, seguros. Uma vida que acontece sempre nas mesmas esquinas, nos mesmos bares, nas mesmas pautas.
Não há, por certo, problema nenhum em investir a energia nas mesmas coisas. O ressentimento não pode ser confundido com propósito. Aliás, não há qualquer zona mista entre eles. Ainda assim, é importante deixar claro que o fato de não mudar de ideia, de amor e de foco o tempo inteiro não é a mesma coisa que ressentir-se. Também é possível mover-se nos mesmos lugares; afinal, o movimento não tem a ver com o espaço que ocupamos e com o tipo de projeto que encabeçamos, mas sim com a estagnação de algo infrutífero e posto. Algo que criou raízes em um tempo já irrelevante do ponto de vista dos novos passos, das próximas investidas da vida. Da evolução de um ser que, mesmo que empenhado com as mesmas coisas, inova-se frequentemente em espírito e ocasião. Que assume as próprias misérias e, com coragem (e não sem dor), enfrenta as tempestades.
Tenho clareza do quanto podem ser esporádicas as fases virtuosas, mas também tenho convicção de que devem ser celebradas sempre. O ressentimento faz morada nos lares quando não há autovigilância no cotidiano. Quando não interessa mais os detalhes, os passos e as companhias. O pretensioso julgamento amarrado em certezas é sempre um controverso meio de chegar a lugar nenhum, mas, ainda que plenamente adaptado com a inutilidade e com a falta de sentido, insiste nas mesmas prerrogativas. O conforto de um problema já assentado, de um discurso que já não evoca novas provocações. Mais do mesmo é algo com o qual o ser humano acostuma-se. Os estágios de contestação vêm em ondas dissonantes e imprecisas, capazes de passarem despercebidas às almas ocupadas com a erosão do próprio espírito.

Thiane Ávila
Escritora