Livro a céu aberto

Livro a céu aberto

Livro a céu aberto

Era três da tarde de qualquer dia quando, de repente, amanheceu. O céu ensolarou, e as flores jogadas num canteiro pelo vento, como num passe de mágica, levantaram-se e puseram-se a dançar por entre as esquinas de uma cidade exageradamente urbana. Olharam fundo nos olhos dos passagentes e, com seu perfume mágico, lançaram a paralisia aos relógios dos pulsos de quem atravessava seu caminho. Repentinamente, homens e mulheres não contiveram as lágrimas ao depararem-se consigo mesmos anestesiados por uma injeção intensa de presente. De calma e de desassossego, tudo de uma só vez.

Naquele dia, as árvores desprenderam a voz dos seus troncos e passaram a dialogar, em verso, com o som dos pássaros. Foi uma festa de ponta a ponta na cidade. Não houve alma mais ou menos atenta que não tivesse sido pescada pela espontaneidade da estação. Como num grande coro, o livro dos tempos estava a céu aberto, à mercê das nuvens, ventos, chuvas e quaisquer eventos extraordinários que o momento presente pudesse proporcionar apenas nos instantes necessariamente fortuitos e eternos.

O chão vermelho de terra, escorregadio, amaciou os pés descalços que nele se atreviam pisar. Numa dança flamejante e de corporalidades indivisíveis, lama e pele se misturavam e se confundiam, trazendo das raízes do acaso a beleza mais exuberante das invenções despretensiosas de um tempo perdido e, de quando em vez, encontrado. Naquele dia, de tão desencontrado que estava o tempo, cada tilintar de ausência pulsava forte nos corações apaixonados, assim como naqueles leves de pura serenidade e aconchego de mar. O cheiro do vento trazia fragmentos de rio, adoçando a aurora ao mesmo tempo em que picava a pele macia da nudeza materializada nos corpos corajosos e expostos para o mundo. Tudo graças à areia fininha trazida de desertos desconhecidos e deliciosamente misturados com a poeira transmutada das coisas humanas. Tudo virou uma coisa só.

Num atropelo de versos e música, as artes se uniram, invisíveis, trazendo às almas o remanso de um balanço quase uníssono, não fossem as necessárias diferenças das vozes e dos ritmos que transpassavam as intenções de toda a união que fazia morada nos peitos compartilhados. A emoção, invasora dos peitos provocados, fez hora macia nas sensações e, como quem já é de casa, fez questão de fazer morada ao menor sinal daqueles menos preocupados com o amanhã, mais arraigados nas surpresas de viver de verdade, ou seja, agora.

A grande virada daquele dia aconteceu no minuto seguinte, ou seja, no presente depois das três. Sem contar as horas, um senhor de pouca idade aproximou-se do letreiro da entrada da cidade e colocou-se a observar, paralelamente, as flores esvoaçantes e as letras que descreviam qualquer coisa convencionada aos que adentravam o local pela primeira vez. Naquele instante, nada fazia mais sentido do que descrever a cidade por meio das flores, pois, se viver a cidade significa ter dentro dela pedaços de vida que se combinam, nada menos esclarecedor do que um montante de pedra para traduzir organismos vivos que, de pedra, não têm nada – quiçá uma parentalidade ancestral dos tempos da criação, mas nem isso se pode garantir. Sendo assim, as gentes todas começaram a se exasperar com ganas de vivências, retirando toda e qualquer ameaça do prefixo “sobre” das suas presenças de viver. 

O mundo inteiro, naquele dia, fez-se admirador das sutilezas do porvir, permitindo que o devir se aconchegasse, confortavelmente, na deliciosa sensação de não controlar absolutamente nada e, graças a isso, poder usufruir, com a ousadia de um presente ininterrupto, as provocações que apenas as pessoas atentas são capazes de perceber. Eu, se bem me lembro, vivia intensamente a música de ruídos que o vento empurrava em minha janela, chantagiando a máteria como quem compete, sem pretensão de vitória, por um espaço novo a cada distração que nos damos ao luxo de perceber.

Um dia de cada vez, ao se viver apenas o dia que é, a vida vai conformando os absurdos à sua maneira, apenas para tirar sarro da cara de quem leva tudo a sério demais. Eu, por exemplo, já levei a sério que viver só faz sentido quando traçamos grandes objetivos de ser. Hoje, de mansinho, vou acordando um dia por vez, planejando o próximo minuto e exercitando meu estado de contentamento por estar viva agora. E só.

Thiane Ávila

Thiane Ávila

Escritora